19.1.09

trabalho de parto

um sol quente com muitas nuvens cinzas, além da brisa suave que jamais aparecia. aquela brisa estava alí, batendo no rosto, e em contato com a pele produzia uma estranha sensação de cócegas. o pensamento parecia um filme colocado na mais alta velocidade, o que a impedia de agarrar a qualquer um dos frames. às vezes parava para refletir sobre esta tal incapacidade de se prender a um pensamento apenas. e também sobre a incapacidade de exteriorizar qualquer imagem ou som visto na tela da cabeça. mas nada disso a incomodava.
no rosto era possível ver aquela leve contração do canto da boca, aquele sorriso que mostra apenas a calma de dentro do coração. os olhos piscavam absurdamente lentos, e cada arfada do peito demorava minutos para se completar. as nuvens cinzas começaram a se dissipar em forma de gotas que pingavam sobre os ombros descobertos, escorriam pelos braços e costas, e a cada momento de contato entre água e pele, a sensação de cócegas do rosto com a brisa era potencializada, e parecia que podia sentir a absorção de parte dos pingos pelos poros.
ela sabia que seu humor estava prestes a chegar no cume, de onde ele sempre se lança abismo abaixo. mas nada disso a incomodava. cada segundo dessa tranquilidade parecia ser colocado cuidadosamente no vazio que está dentro do saquinho da angústia que nasceu com ela, dentro dela. a claridade do dia parecia entrar pelas narinas enchendo os pulmões de belos sons e vozes [indescritíveis como tudo que estava dentro], que se espalhavam por cada vaso do corpo, um dia fragilizado, e naquele momento forte, carregado somento pelo coração.
o único sentimento ruim era a compaixão que sentia pelas outras pessoas, tão cheias de inquietações e medos, sempre tão presentes nela, e tão distantes neste momento. ela queria gritar a todos que não é preciso procurar, está tudo lá, dentro de cada um, ao lado, em cima, em volta. só é preciso enxergar de olhos fechados, só é preciso estar com você mesmo em todos os momentos. queria explicar que é tudo muito maior do que isto apenas, e que nada virá. o tudo já está aqui, nós somos o tudo, o que veio e o que há por vir, mas o mais importante, nós somos o que está agora, e não entendia porque procurar outra coisa tendo tudo nas mãos.
mas não disse nada. continuou andando, sentindo cada pingo de chuva, cada sopro do vento, olhando tudo por trás dos óculos escuros cheios de gotas e sorrindo, esperando que algum qualquer dividisse isso que não cabia dentro dela.

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